Há decisões que abalam os códigos. Decisões que esfolam as convenções, que perturbam as mentes formatadas. Uma dessas decisões é a de não mandar os filhos para a escola. É uma decisão que deixa algumas pessoas arrepiadas e outras com o olhar de reprovação. É julgada. Suspeita-se dela. É acusada de utopia, de imprudência, até de rebelião contra a ordem estabelecida.
Mas e se a rebelião for apenas um rótulo que colocamos naqueles que se atrevem a pensar de forma diferente?
E se, por detrás desta escolha radical, houvesse outra coisa: lucidez? Uma resistência suave? Um amor radicalmente ancorado na observação atenta das crianças?
A escola: uma instituição sagrada… mas para quem?
Desde há dois séculos, a escola foi elevada à categoria de totem social. É a única via de acesso, a estrada real para o “sucesso”. Uma criança sem escola? Que heresia. Que loucura. Imaginamos imediatamente uma criança abandonada à sua sorte, um selvagem em formação, privado de sociabilidade, de educação e de oportunidades.
Mas paremos por um momento.
Olhemos para esta escola que tanto glorificamos.
Um lugar que diz estar a formar os cidadãos de amanhã, mas onde, muitas vezes, as crianças aprendem a ficar caladas, a ficar quietas, a caber em caixas.
Olhemos para este sistema baseado não no respeito pelo ritmo individual, mas na conformidade.
Não na alegria de aprender, mas no medo de falhar.
Não na criatividade, mas no desempenho.
Quando é que nos esquecemos de que a aprendizagem é uma aventura viva, orgânica e sensorial?
Em que momento acreditámos que a aprendizagem pode ser confinada entre quatro paredes, com campainhas a tocar de hora a hora, como numa fábrica?
A escola produz alunos, não seres vivos
Já devem ter visto os olhos de uma criança de quatro anos brilharem com perguntas. Uma criança que descobre as estações do ano, o tempo e o mundo com a naturalidade de um ser vivo. Depois, é preciso vê-lo dois anos mais tarde, arrastando a mochila mais pesada do que os seus sonhos, com os olhos vidrados, recitando regras sem sentido.
O que a escola não diz é que faz uma seleção.
Classifica de acordo com critérios quantificáveis: velocidade, memória, docilidade.
Recompensa os que são rápidos, os que obedecem, os que se enquadram na norma.
E os outros?
Guiamo-los. Endireitamo-los.
São rotulados: “com dificuldades”, “TDAH”, “falta de concentração”, “precisam de apoio”.
Mas ninguém se pergunta se não é o próprio sistema que está com problemas.
Ninguém se pergunta se estas crianças não são simplesmente… humanas.
Não à escola: um ato poético de resistência
Portanto, não. Não é uma rebelião.
Não é o capricho de um pai hippie.
Não é uma fuga. É uma escolha. Uma escolha que foi amadurecida, pensada e ponderada.
É uma forma de dizer: “Escolho confiar no entusiasmo do meu filho pela vida.
Escolho acreditar que a aprendizagem pode ter lugar na natureza, na vida quotidiana, no vínculo.
Escolho respeitar o seu ritmo, as suas paixões, os seus silêncios.
Escolho a lentidão. A profundidade. A admiração.
É um ato radical de amor e de fé.
A verdadeira questão é: a escola continua a adaptar-se ao mundo dos vivos?
A sociedade mudou. O mundo mudou.
Mas as escolas ainda estão presas a um modelo herdado do século XIX.
Um modelo concebido para uma sociedade industrial, vertical e hierárquica.
Um modelo que forma executantes e não criadores. Consumidores, não pensadores.
E muitos de nós, os pais deste século em mudança, sentimos uma sensação de mal-estar.
Uma profunda dissonância entre o que vemos nos nossos filhos – a sua curiosidade vibrante, a sua capacidade de adaptação, a sua inteligência sensível – e o que a escola espera deles.
Por isso, fazemos a pergunta.
Não para provocar. Não para chocar.
Mas porque está na altura.
“E a socialização? o refrão que esconde a angústia colectiva
Esta é a frase que ouvimos sempre que se fala do ensino doméstico.
Como se aprender a viver com os outros só pudesse ser feito numa sala de aula sobrelotada, entre dois intervalos, sob supervisão.
Como se “estar junto” significasse “estar num grupo homogéneo, da mesma idade, limitado por um horário e regras arbitrárias”.
A verdadeira socialização é aquela que é tecida a partir da diversidade.
Constrói-se na vida real, através do contacto entre gerações, de trocas não forçadas, de projectos comuns e de erros.
Os nossos filhos encontram o mundo todos os dias. Falam com vizinhos, comerciantes, outras crianças que estudam em casa e adultos apaixonados. Não estão isoladas do mundo. Estão inseridas nele.
Para sair dos moldes é preciso coragem
Recusar a escola não é o mesmo que recusar a aprendizagem.
Trata-se de recusar um modelo único, imposto e envelhecido.
É ter a coragem de ir contra a corrente. Significa suportar os julgamentos, os olhares de lado e os comentários mal disfarçados.
Significa aceitar o desconforto do desconhecido.
Significa reinventar-se todos os dias. Significa procurar, duvidar, adaptar-se.
Mas também é viver com intensidade.
É ver o seu filho aprender a ler sem pressão, apenas por curiosidade.
É vê-los a fazer perguntas profundas, a explorar, a criar.
É viver momentos de graça. E de verdade.
O ensino doméstico não é um privilégio de ricos
Muitas vezes pensa-se que é um privilégio das elites.
Mas não se trata de uma questão de meios. É uma questão de prioridades.
Sim, requer escolhas de estilo de vida. Por vezes, sacrifícios materiais.
Mas qual é o valor de um carro novo comparado com uma infância respeitada?
Qual é o valor de uma casa maior em comparação com a liberdade de aprender sendo você mesmo?
O que oferecemos aos nossos filhos não é conforto.
É consistência.
É um ambiente que respeita a sua natureza mais profunda.
O que incomodamos não é o sistema… é o medo coletivo
A opção de não mandar as crianças para a escola é perturbadora porque põe em evidência aquilo que muitas pessoas sentem mas não se atrevem a ver: o sistema está em crise.
E, perante esta crise, todos tentam sobreviver o melhor que podem.
Por isso, aqueles que saem da linha parecem ameaçadores. Pela sua própria existência, recordam-nos que são possíveis outros caminhos.
Perturbam a ordem estabelecida. Abanam as certezas.
E, acima de tudo, recordam-nos o nosso próprio medo de desagradar, de falhar, de fazer as coisas de forma diferente.
Não mandar o seu filho para a escola é recusar a anestesia social
Não mandar o seu filho para a escola não é fugir à realidade.
É recusar a anestesia.
É escolher a consciência.
Significa manter os olhos abertos para um mundo em transformação.
Significa acreditar que o ser humano não pode ser reduzido a exames, médias e protocolos.
Significa apostar no poder da vida.
Significa ouvir as crianças. Ouvir de verdade.
E lembrar que não se aprende a viver obedecendo.
Mas experimentando, caindo, criando. Sendo livre.
E se, em vez de julgarmos esta escolha, nos atrevêssemos simplesmente a fazer a pergunta:
E se eles tivessem razão?

Escrito por Alexandrina Cabral
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